Pausa
Às
sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro,
fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha,
preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
— Vais sair de novo, Samuel?
Fez que sim com a cabeça. Embora
jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora
recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma
máscara escura.
— Todos os domingos tu sais cedo —
observou a mulher com azedume na voz.
— Temos muito trabalho no escritório
— disse o marido, secamente.
Ela olhou os sanduíches:
— Por que não vens almoçar?
— Já te disse; muito trabalho. Não
há tempo. Levo um lanche.
A mulher coçava a axila esquerda.
Antes que voltasse à carga. Samuel pegou o chapéu:
— Volto de noite.
As ruas ainda estavam úmidas de
cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente; ao longo do
cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas. Estacionou o carro numa
travessa quieta. Como pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou
apressadamente duas quadras. Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo.
Olhou para os lados e entrou
furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho
que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos,
pôs-se de pé:
− Ah! seu Isidoro! Chegou mais cedo
hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...
- Estou com pressa, seu Raul -
atalhou Samuel.
- Está bem, não vou atrapalhar. O de
sempre. - Estendeu a chave.
Samuel subiu quatro lanços de uma
escada vacilante. Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre
floreado, olharam-no com curiosidade:
- Aqui, meu bem! - uma gritou, e
riu; um cacarejo curto.
Ofegante, Samuel entrou no quarto e
fechou a porta à chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um
guarda-roupa de pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé.
Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de
viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de cabeceira.
Puxou a colcha e examinou os lençóis
com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a
gravata.
Sentado na cama, comeu vorazmente
quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se e fechou os
olhos.
Dormir.
Em pouco, dormia. Lá embaixo, a
cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando,
os sons longínquos.
Um raio de sol filtrou-se pela
cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido.
Samuel dormia; sonhava. Nu, corria
por uma planície imensa. Perseguido por um índio montado a cavalo. No quarto
abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale
entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde
sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados;
índio acabara de trespassá-lo com a lança Esvaindo-se em sangue, molhado de
suor. Samuel tombou lentamente: ouviu o apito soturno de um vapor. Depois,
silêncio.
Às sete horas o despertador tocou.
Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e
saiu. Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.
- Já vai, seu Isidoro?
- Já - disse Samuel, entregando a chave.
Pagou, conferiu o troco em silêncio.
- Até domingo que vem seu Isidoro -
disse o gerente.
- Não sei se virei - respondeu
Samuel, olhando pela porta; anoite caía.
- O senhor diz isto, mas volta
sempre - observou o homem, rindo.
Samuel saiu.
Ao longo do cais, guiava lentamente.
Parou um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu
avermelhado. Depois, seguiu. Para casa.